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A Sinagoga de Alfama

Em 20 de Fevereiro de 1951 faleceu o nosso ilustre e saudoso amigo, um dos mais eminentes olisipógrafos, Eng. Augusto Vieira da Silva. A implacável morte ceifou-o repentinamente em plena actividade, apesar dos seus provectos 82 anos incompletos (pois nasceu em Lisboa em 10 de Setembro de 1869) e ainda em excelente estado de saúde, conforme a sua própria afirmação, amoràvelmente reproduzida no lutuoso e sentido artigo necrológico do Dr. Jaime Lopes Dias na Revista Municipal n. 48 de 1951- «Na verdade, Doutor, - dizia-lhe o Eng. Vieira da Silva pouco antes de falecer  - sinto-me bem. Não sou moço, mas estou a passar bem".

Infelizmente, o seu inesperado falecimento pôs de luto a Revista Municipal, da qual era, constante colaborador, e «a gloriosa confraria dos olisipógrafos», na bela expressão do Dr. Jaime Lopes Dias. Acrescentaremos que a Comunidade Israelita de Lisboa ficou igualmente enlutada - apesar de Vieira da Silva não ser judeu - por perder, pela sua morte, um exímio e competente investigador das antigas Judiarias de Lisboa e das respectivas sinagogas.

O Eng. Vieira da Silva foi, com efeito, o primeiro, e até agora o único, olisipógrafo que estudou minuciosamente a situação das diversas Judiarias da Lisboa antiga, nas suas, já clássicas, obras: A Judiaria Velha de Lisboa, Lisboa 1899/1900 e A Judiaria Nova e as Primitivas Tercenas de Lisboa, Lisboa 1901.

Resumindo os exaustivos estudos de Vieira da Silva, diremos que, além da primitiva e mais antiga Judiaria de Lisboa do bairro da Pedreira, onde foi construída uma sinagoga. em 1260, cuja inscrição hebraica publicámos (1), Judiaria que teve efémera existência, por ter sido extinta por D. Dinis em 1317, existiam em Lisboa três Judiarias:

1 - A Judiaria Velha, ou Judiaria Grande, ocupando o bairro de Santa Madalena, estendendo-se, aproximadamente, entre as igrejas de Santa Madalena e de S. Nicolau, a antiga Rua dos Mercadores (que, antes do terramoto, se encontrava entre as actuais Ruas da Conceição e de S. Nicolau), a Rua da Princesa (actualmente Rua dos Fanqueiros) e a Rua Nova (que se encontrava aproximadamente à altura da Rua dos Bacalhoeiros).

Essa Judiaria possuía uma sinagoga, chamada Sinagoga Grande, construída em 1307, que se encontrava na Rua da Princesa, à  esquina da Rua dos Mercadores, aproximadamente, a meia distância entre as actuais Ruas de S. Nicolau e da Conceição.

Depois do decreto de expulsão dos judeus de 1496, esta sinagoga foi transformada em igreja de Nossa Senhora da Conceição e D. Manuel fez dela doação ao Mestrado do Cristo. Mais tarde, a Ordem de Cristo mandou para lá os freires de uma ermida que havia no sítio do Restelo - onde se construiu depois O Mosteiro dos Jerónimos - tendo-se conservado freires da Ordem de Cristo na antiga sinagoga até o terramoto de 1755.

Como em 1698 se erigiu a igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição na vizinha Rua dos Ferros, a antiga sinagoga passou então a chamar-se Conceição Velha, para a distinguir da nova igreja da Conceição.

Em consequência do terramoto de 1755, que destruiu pelo desmoronamento e pelo incêndio a quase totalidade de Lisboa, a ex-Sinagoga Grande foi também completamente destroçada, ficando apenas uma lápide com uma inscrição hebraica, que foi salva de entre os destroços pelas devotadas mãos do então Bispo de Beja, D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, que a levou para a sua diocese de Beja e mais tarde para Évora, pela ascensão do prelado de Beja a Arcebispo de Évora. Actualmente, constitui uma das jóias paleograficas do Museu Luso-Hebraico «Abraham Zacuto» de Tomar (2).

Tendo a igreja da Misericórdia da Rua da Alfândega escapado em parte à destruição, os freires da Ordem de Cristo, da ex-Sinagoga Grande, ou igreja Colegiada da Conceição Velha, foram transferidos para a vizinha igreja da Rua da Alfândega, que, por esta razão, passou a chamar-se também - mas só depois de 1755 - da Conceição Velha.

Daí provém a errada suposição de alguns olisipógrafos, repetida em vários Guias de Lisboa, de que a actual igreja da Conceição Velha da Rua da Alfândega, era antiga sinagoga. A igreja da Conceição Velha, que foi realmente sinagoga, era a que estava situada, antes de terramoto, algures entre as actuais Ruas de S. Nicolau e da Conceição, e que, como dissemos, ficou completamente destruída.

 

2. - A Judiaria Nova, ou Judiaria Pequena. Quando os judeus tiveram de abandonar o bairro da Pedreira, foram estabelecer-se, entre 1317 e 1319, nas proximidades da actual Rua de S. Julião, onde fundaram a Judiaria Nova, também chamada das Taracenas, ou Judiaria Pequena da Moeda, por ficar próximo o antigo edifício da Moeda. Essa Judiaria era realmente pequena, e parece que se reduziu apenas a uma só rua, que se chamava então Rua da Judiaria ou das Taracenas ou Tercenas, seguindo, aproximadamente, o eixo da actual igreja de S. Julião, desde a porta principal até à fachada do edifício do Banco de Portugal, na Rua Áurea. A Judiaria Pequena, que teve igualmente uma sinagoga, "esnoga que partia por detrás com casas da Rua Morraz, e junto dela havia huma casa de banhos dos Judeos» (3), esteve sujeita a ter sorte idêntica à da Pedreira, pelo facto de que, em 1370, D. Fernando tinha ordenado "derribar a rua das Taracenas em que os judeos moravam", mas, felizmente, esta ordem não teve seguimento.

E  provável que a sinagoga da Judiaria Pequena estivesse situada no sítio onde se encontra a actual igreja da Rua de S. Julião, pelo facto de que, na reconstrução de Lisboa depois do terramoto, se construir uma igreja no sítio onde anteriormente tivesse existido uma antiga igreja, sendo certo que, no reinado de D. Manuel, a ex-Sinagoga da Judiaria Pequena também foi transformada em igreja.

3. - A Judiaria da Alfama, ou a Judiaria Pequena da Torre de S. Pedro. Nesse bairro, que, como se sabe, não fora atingido pelo terramoto, ainda existe a respectiva Rua da Judiaria. Sabe-se também que essa Judiaria possuía urna sinagoga, que fora construída em 1373/74, como consta de uma sentença de D. Fernando que diz: “no anno da era myl quatrocentos onze a doze annos (= 1373 a 1374) os judeus da dita cidade (Lisboa) fizeram sinagoga nova sem nosso mandado na Alfama ... “, pelo que foram condenados a pagarem a multa de 50 libras da ouro, "... e a livra ha de ser de lxxij dinheiros douro", multa de que, aliás, o rei os absolveu, sob certas condições (4).

A Judiaria da Alfama, ou pelo menos a sua esnoga, foi fundada apôs a trágica investida das Judiarias pelas hostes de D. Henrique II de Castela, no seu ataque a Lisboa em 1373, o que explica a urgência que teve a comunidade judaica em fundar uma nova Judiaria e uma nova sinagoga, sem esperar a obtenção da prévia licença régia. Foi essa, provavelmente, a razão pela qual a comunidade israelita ficou absolvida do pagamento da multa de 50 libras em ouro que lhe foi imposta por ter construído nova sinagoga sem licença régia, sob a condição, porém, de que não «uzassem dela para sinagoga nem tenham nellas touras, nem alampadas, nem outras couzas que a ella pertencem, nem fazerem nella oras ... », para não estorvarem «as oras da igreja de sam pedro», que se encontrava na proximidade da sinagoga.

Não sabemos se essa proibição foi mantida ou se, mais tarde, a comunidade judaica obteve autorização de utilizar a sinagoga da Alfama para as suas orações,

Faltava determinar o sitio onde se encontrava a antiga sinagoga da Alfama.

Parecia que, desde que a Alfama saiu ilesa do terramoto, deveria, talvez, ser possível identificar o edifício da sua antiga sinagoga.

Confessamos, que levado por essa esperança, palmilhámos muitas vezes os estreitos e abruptos meandros da velha Alfama à procura de uma casa antiga que tivesse aspecto sinagogal. Essas inspecções visuais de certas casas de aspecto antigo nos levaram a abandonar as nossas pesquisas, por nos convencermos da inutilidade do seu prosseguimento.

Vimos, com efeito, que nas actuais ruas da Alfama, muito embora tivessem conservado o traçado das vielas e travessas antigas, os edifícios já são mais ou menos modernos. As antigas casas da Alfama, ou a maior parte delas, foram, pouco a pouco, substituídas por casas novas, de mais andares, ainda que continuassem a ocupar as mesmas áreas e conservassem o mesmo alinhamento que as casas antigas que foram substituindo. Nessas condições, as actuais ruas da Alfama ainda que conservassem o tortuoso traçado antigo, a maior parte das casas existentes já o não é e, consequentemente, poucas esperanças havia de se poder descobrir a casa da antiga sinagoga, por entre o actual casario da Alfama.

Um dia porém, encontrámos na Baixa o nosso velho amigo o Eng. Vieira da Silva, que, muito alvoroçado, nos comunicou a boa nova de ter descoberto na Torre do Tombo um documento manuelino sobre a “ysnoga da Alfama”, contendo confrontações e indicações que permitiriam possivelmente a sua identificação (5), tanto mais que uma das confrontações era dada em relação à cerca Fernandina, cujo traçado Vieira da Silva já tinha completado na sua planta. Graças a estes dados poderíamos talvez, ele, como competente olisipógrafo e nós, como perito sinagogal, determinar a situação exacta da antiga sinagoga de Alfama.

Assim fizemos, e no dia combinado encontrámo-nos na Alfama, vindo Vieira da Silva  munido da sua planta e da copia das medidas e confrontações do citado documento do Tombo, estando ambos decididos a darmos com a sinagoga ...

Efectivamente, demos com ela. Infelizmente porém, não encontrámos o próprio edifício da sinagoga, alias, constituída por «quatro casas sobradadas», conforme reza o documento manuelino, achando em seu lugar uma casa moderna de quatro andares, situada no n. 8 do Beco das Barrelas - estreita e curiosa viela em forma de U designada no dito documento por «travessa que vay teer ao muro» -, em frente da Rua da Judiaria e do Largo de S. Rafael. E com efeito, nesse mesmo sitio que,  de acordo com as confrontações e medições consignadas no documento manuelino da Torre do Tombo que publicamos - devia encontrar-se a ”ysnoga" (da Alfama) “na Judiaria pequena quo foy a torre de sam pedro”. A Rua da Judiaria ainda existe e, embora já tivessem desaparecido a Torre e a porta de S. Pedro, conhece-se o sítio onde a dita Torre se encontrava, pelo facto de ter sido marcado o respectivo emblema, as chaves de S. Pedro, numa laje embutida na parede de encosto do pequeno Largo de S. Rafael, onde desemboca a Rua da Judiaria.

Quisemos contudo investigar a dita casa do Beco das Barrelas, que apresenta no rés-do-chão um portão de ferro que dá acesso a uma carvoaria sem pavimento, ou seja de pavimento térreo. Examinámos a carvoaria, mas nada aí encontrámos que nos fizesse lembrar uma sinagoga, a não ser a espessura das paredes que, possivelmente, podem ser restos do antigo edifício sinagogal. O actual portão de ferro parece moderno, mas é de admitir que um portão de ferro tivesse possivelmente servido de entrada à própria sinagoga.

Isto passou-se poucos meses antes do falecimento do nosso querido e saudoso amigo Eng. Vieira da Silva, e é com profunda tristeza que aproveitamos esta ocasião para publicar os resultados de uma das suas derradeiras e ainda inéditas investigações.

Pelo falecimento do insigne olisipógrafo estão de luto: Lisboa, que perdeu um dos seus mais activos e mais competentes cultores, e a Comunidade Israelita de Lisboa, que perdeu o primeiro, senão - por enquanto - o único investigador das antigas judiarias e esnogas olisiponenses.

 

Bendita seja a sua memoria!

 

Samuel Schwarz

 

1.               Inscrições Hebraicas em Portugal, Lisboa 1923, separata da Arqueologia e Historia, Vol I. No mesmo estudo reproduzimos tambem o resultado das investigaçoes de Vieira da Silva sobre as Judiarias de Lisboa.

2.                  A sua interessante inscriçao ja foi por nos traduzida e estudada no nosso trabalho Inscrições Hebraicas em Portugal, obra ja citada.

3.                   Extremadura, Liv. I, fl. 121, ano 1498 (Torre do Tombo)

4.         Torre do Tombo, Chancelaria de D. Fernando, Liv II, fls 53 v., er 1417, que corresponde a 1379 e reza assim:

Sentença ante (Entre) el Rey e a comuna dos Judeus de Lixboa por razam da sinagoga da Alfama. Dom Fernando etc. a quantns esta carta vyrem fazemos saber que perante nos pareceo hum feito por agravo dante (de entre) gonçalo lourenço juiz que entam era dos feitos dos nossos contos da cidade de lixboa o qual feito era ante nos e a comuna dos judeus da dita cidade par razam de demanda que afonso martins nosso procurador por nos e em nosso nome fazia a dita comuna por ante os nossos contadores da dita cidade. E depois por ante o dito gonçalo lourenço dizcndo contra a dita comuna que no ano da era de myl quatrocentos onze a doze (correspondentes a 1373-1374) anos os judeus da dita cidade fizeram sinagoga nova sem nosso mandado na alfama consentindo toda a comuna ê a qual rezavam e faziam sua oraçam. E dizia o dito afonso martins nosso procurador que era direito que nenhu judeu nom fizesse nem cemeçasse a fazer sinagoga nova sem mandado do senhor da terra e por fazer ou começar a fazer que pague cincoenta livras douro para nos e a livra ha de ser de lxxii (72) dinheiros douro. E dizia que os ditos judeus da comuna da dita cidade fizeram a dita sinagoga sem nosso mandado pela qual couza cairam na dita pena e pedia o dito nosso procurador que os ditos contadores pela sua sentença constrangessem a dita comuna que dessem e pagassem a nos as ditas Livras cincoenta douro e se alguma cousa ficasse por declarar protestava ao declarar nos assuntos seguindo mais compridamcnte em sua petiçam era contheudo. A qual visto pelo dito gonçalo lourenço julgou que nom trazia direito, da qual sentença o dito nosso procurador para nos agravou. E nos visto o dito agravo julgamos que o dito gonçalo lourenço nom julgou bem e corregendo em seu juizo julgamos que a dita petiçam trazia direito e mandamos a lazaro benefacto procurador da dita comuna que a contestasse a qual elle contestou della por confissam della por negaçam e sobre o negado foy tirado inquíriçam a qual vista por nos em relaçam com os do nosso conselho perante o conde dom joham afonso dourem e presentes o nosse procurador e o procurador da dita comuna julgamos que se nom provara da nossa parte tanto que a considerasse aaquilo que era pedido que a dita comuna em razam das livras de ouro que lhe era demandado e porem absolvemos desta a dita. comuna. E que se mostra por actos que a dita sinagoga esta em 1ugar que estorvam as oras na igreja de sam pedro mandamos que nom uzassern della para sinagoga nem tenham nella touras (pentateucos) nem alampadas nem outras couzas que a ela pertencem nem fazem nella oras e que o nosso procurador quisesse demandar que sera recebido e que cite samuel aurico judeu que se prova que a mandou fazer e fazer e lhe ham disto porem nos mandamos que cumprides o nosso juizo como em elle he contheudo um al nom façades. Dado em santare xxi dias de novembro e1 Rey o mandou para gomes martíns bacharel em leis seu vassalo e veedor da sua fazenda. Vasco vicente o fez era de myl iiij exvlj anos (1417 da era corresponde ao ano de 1379).

Pelo documento supra vê-se que a comuna judaica de Lisboa foi absolvida do pagamento da multa de 50 libras ouro, mas que foi proibida de continuar a servir-se da sinagoga da Alfama para o seu serviço religioso.

 

5.              Estremadura, Livro I, fls. 252 v.,  cujo trecho, datado de 1502, é do seguinte teor:

“Item a ysnoga que foy que traz gonçalo fernandez he na dita cidade (Lisboa) na judiaria pequena que foy aatorre de sam pedro e parte ao norte com Rua publica e ao sul com eyrado de bertholomeo geronimo e ao levante com casas de gonçalo cortador e com casas que foram da mourisca e ao poente com travessa que vay teer ao muro (cerca) e no terreo com logias do dito bertholomeo geronimo e com outras com qu e de dereyto deue  partir, em aqual ysnoga sam quatro casas sobradadas, sem logia alguua e teem de longo huua delas dez varas e mea e de largo ao sul contra quatro varas e duas terças e ao norte contra a Rua tem tres varas e terça e a  outra casa tem de largo duas varas e mea e de longo tres varas e mea e outras duas casas teem ambas de longo quatro varas e de largo duas varas de cinco palmas vara e paga o foro do cada huu anno dous mil e oitocentos rs e duas galinhas ...

Não há duvida que se trata da sinagoga de Alfama por ser localizada à Torre de S. Pedro e confrontar com casas que foram da mourisca. Também não há duvida. que só o Eng. Vieira da Silva era capaz de se orientar naquelas complicadas confrontações e medidas.

 

 

 

 


Figura 1. ARCO DO ROSARIO QUE DO TERREIRO DO TRIGO LEVA PARA A RUA DA JUDIARIA DE ALFAMA

 

 

Figura 2. Rua da Judiaria


 

Figura 3. NA CASA NO 8, NO BECO DAS BARRELAS O X  MARCA O LUGAR ONDE SE ENCONTRAVA OUTRORA A SINAGOGA DE ALFAMA

 

FIGURA 4. PROF.DR. CHAIM WEIZMAN, PRIMEIRO PRESIDENTE DO ESTADO DE ISRAELN HA POUCO FALECIDO, DURANTE A SUA VISITA A JUDIARIAS DE ALFAMA EM 1940, NA NOSSA COMPANHIA E DO JORNALISTA ZELIK BACK (FOTOGRAFIA DO SR. DAVID ALPERN)

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