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O sionismo no Reinado de Dom Joao III

por

Samuel Schwarz

 

O problema de restabelecimento do povo judaico na sua antiga pátria, ou seja o plano sionista para a realização do qual a Inglaterra obteve, em 1920, da Sociedade das Nações, o Mandato para o estabelecimento do Lar Judaico na Palestina, não é novo. Existe latente na alma do povo judaico desde a perda da sua independência nacional, há cerca de 18 séculos. Mas é menos conhecido o facto de que o projecto sionista - que figura novamente na ordem de dia da desnorteada politica internacional - teve o seu início, em Portugal, no reinado de D. João III.

Este facto revela-nos um D. João III de feição ainda desconhecida: em vez de um rei fanático, inimigo acérrimo dos cristãos-novos e teimoso fundador da Inquisição em Portugal, depara-se-nos um monarca tolerante, favorável aos judeus e aos cristãos-novos portugueses, pelo menos durante a época em que se encontrava na Corte o “embaixador” judeu.

O embaixador David 

Quem era esse «embaixador» judeu, de onde vinha e qual o assunto que o levou para junto de D. João III? Chamava-se David e dizia-se filho de um rei Salomão e irmão do rei José, soberano de um reino judaico, situado algures no deserto de Habor (ou do monte Tabor), na península arábica, e constituído por algumas das perdidas dez tribos de Israel principalmente da tribo de Ruben, razão pela qual ficou conhecido na História judaica pelo nome de David Reubeni, ou seja descendente da tribo de Ruben. Em Portugal era conhecido pelo nome de David (ou Davit) Judeu.

Conforme os escritores hebreus coevos o descrevem, era pequeno de corpo, minguado de carnes pelos jejuns, moreno de face, tipo de abexim, aparentando, em 1525, entre 40 e 45 anos de idade.

Vinha de Roma, onde se entrevistara com o papa Clemente VII, a quem agradou o seu projecto sionista, pelo que o dirigiu, com cartas de recomendação, para o potentoso monarca português.

David Reubeni apresentava-se como embaixador do seu irmão, o rei José, e dos seus setenta conselheiros e o seu projecto consistia em promover a conquista da Palestina aos turcos e a restauração do treino de Judá na Terra Santa. Para este efeito, o «embaixador» oferecia, em nome do seu irmão, pôr em campo um exército de 300 mil adestrados guerreiros judeus, para o qual vinha pedir aos chefes da Cristandade - «a título de empréstimo e arrendamento» dir-se-ia agora - auxílio em armamento e artilharia.

Talvez, antes de Churchill, já tivesse exclamado:

Dai-nos as ferramentas e nós faremos o trabalho!

 O motivo político que proporcionou ao fino diplomata David Judeu o ensejo de apresentar ao papa e aos Reis católicos um pedido de auxílio para uma empresa puramente judaica, consistia no argumento de que a conquista da Palestina aos turcos, por um poderoso exército judeu, traria uma grande vantagem à Cristandade, pelo facto de que uma derrota militar, infligida ao exército turco, embargaria a nova e assustadora vaga de expansão islâmica, levada a cabo, através de Europa meridional, pelas vitoriosas tropas otomanas.

 Com efeito, após a conquista de Constantinopla, em 1453. os turcos conquistaram a Síria, a Palestina, o Egipto, toda a África setentrional, a Grécia e os demais Estados balcânicos, tendo invadido Buda, capital da Hungria, chegando às portas de Viena, capital da Áustria ... O pânico era geral na Europa cristã e o papa Clemente VII - apesar das suas próprias atribulações - incitava os monarcas católicos a uma cruzada contra o ameaçador império turco.

A maior dificuldade para a realização do plano pontifício residia em conseguir um entendimento entre os reis católicos, fundamentalmente desunidos e desavindos entre si, e alguns deles - como o imperador Carlos V - para com o próprio papa! ...

A oferta de Reubeni, em alinhar, contra o Grão-Turco, um exército de 300.000 judeus, vinha pois, no momento mais oportuno e não podia deixar de agradar ao sumo pontífice e a D. João III, como de facto agradou.

O apoio do papa

 Clemente VII, entusiasmado com o plano de David Reubeni, animou-o a ir expô-lo ao rei de Portugal, ao tempo um dos mais poderosos monarcas da Europa, o qual - por sua vez - podia recomendá-lo ao seu cunhado Carlos V, rei de Espanha e de Itália e imperador de Alemanha, pois as relações entre o papa e aquele monarca não eram de molde a poder fazê-lo directamente. Com efeito, pouco tardou que o imperador Carlos V mandasse prender Clemente VII e se proclamasse rei de Roma, depois de a ter saqueado.

Entretanto, Clemente VII obteve, por intermédio do embaixador de D. João III em Roma, D. Martinho de Portugal, o necessário salvo-conduto régio para o livre trânsito de Reubeni e do seu séquito em Portugal, visto que, depois do decreto de expulsão dos judeus, de 5 de Dezembro de 1496, nenhum judeu ou mouro podia legalmente “morar ou estar nos Reinos e Senhorios de Portugal”.

Não conseguimos encontrar, nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo. o acima aludido salvo-conduto para a vinda de David Reubeni a Portugal, mas tivemos a boa fortuna de encontrar  na Chancelaria de D. João III, registo do salvo-conduto que o monarca português outorgou para a saída de David Judeu e do seu séquito de Portugal.

Este documento é ainda inédito e tencionamos publicá-lo em breve, junto com outros, como subsídio para a História luso-hebraica. Entretanto, podemos afirmar que dele se depreende que Reubeni tinha realmente obtido um salvo-conduto para a sua livre entrada em Portugal e que, no seu séquito, figuravam seis judeus, que foram abrangidos pelo mesmo salvo-conduto.

Recentemente, tivemos também a dita de descobrir no tesouro inesgotável da Torre do Tombo outro preciosíssimo documento inédito: uma carta do próprio Davit (sic) Judeu, dirigida a D. João III, para o avisar da sua chegada a Tavira em 22 de Outubro de 1525.  E do teor seguinte:

«Magnifica Sacra Magestade lllustrissimo Rey de portugal Saude, escrevo esta so pera avisar a Vossa Magestade como o vosso servo sam arribado aquy na Terra de Vossa Sacra Magestade e sam enviado aquy do Deserto de habor per mandado dei Rey giusepe meu Irmão e de sesenta (aliás, Setenta) seus velhos Conselheyros e Juizes, os quaes todos seram ao mandado de vossa Magestade: tem sua Senhoria açerca de 300.000 bons combatentes e tem carrego de sua Justiça e Razão todas as segundas e quintas feyras, e com acôrdo o dicto meu Rey giusepe com seus setenta Conselheyros mandaram a mym vosso novo servydor a fallar a Vossa Magestade cousas de Importancia e Segredo o que Vossa Magestade folgara de saber quando ouver por bem de me ouvir por que sera pera honrra e gloria de Vossa Magestade e onde o vosso servo sera a serviço des Vossa Sacra Magestade sempre muy aparelhado. Escrita em tavilta (Tavira) terra de Vossa  Magestade onde sam arribado a 22 dias do presente mes per mar, feyto a 24 doutubro 1525.

Per mym vosso novo servo, Davit filho del Rey Salmon Judeu».

Estamos, incontestavelmente, diante de uma carta original e não de cópia posterior, embora seja de admitir que a carta não fosse escrita pelo punho do próprio David Judeu, que - conforme os seus biógrafos judeus - só sabia hebraico e árabe, mas por um dos seus ajudantes judeus que trouxera da Itália.

A confirmar tal suposição está aspecto gráfico da carta, num belo cursivo italiano, muito empregado em Portugal no século XV, mas que já não era usado no século XVI. Há também a italianização do nome do rei judeu Joseph (ou José) por Giusepe.

O seu estilo é um vernáculo manuelino, o que prova que o seu redactor não era um estrangeiro, mas sim, um português, certamente um judeu português, que tivesse vivido em Portugal no reinado de D. Manuel e que, por causa do decreto de expulsão dos judeus, de 1496, saiu de Portugal e se estabeleceu em Itália.

Nas suas Memórias, escritas em hebraico, (Manuscrito existente na Biblioteca Boldeiana da Universidade de Oxford, publicado - parcialmente - em alemão pelo eminente historiador H. Graetz, em 1856, e ultimamente, no original hebraico, pelo ilustre escritor palestiniano, Dr. A. Z. Aescoli, em Jerusalém. em 1940) David Judeu cita frequentemente o seu velho e fiel secretário Salomão Cohen do Porto, que trouxe consigo de Itália e que durante a sua estada em Portugal, -lhe serviu de secretário, guarda-livros e intérprete.

A julgar pelo seu apelido, Salomão Cohen do Porto deve descender de uma família judaica do Porto e, pelo facto de que em 1525 já era velho, deve ter nascido umas dezenas de anos antes da expulsão dos judeus de Portugal em 1497. Educado em Portugal no reinado de D. Manuel. compreende-se que tenha conservado o estilo e a escrita usados em Portugal no século XV. E a ele que atribuímos a autoria da bela carta portuguesa de Davit Judeu para D. João III. Carta ainda desconhecida dos historiadores e biógrafos de David Reubeni e que pela primeira vez se publica.

No Arquivo Histórico Português, tomo II, pág. 224, existe apenas uma referência a esta carta num índice dos documentos existentes na Torre do Tombo, no Corpo Cronológico, relativos aos sucessos da Índia, nos anos de 1524 a 1531. Porém a carta, ficou inédita.

A corte de Almeirim

 Depois do seu desembarque em Tavira em 22 de Outubro de 1525, onde foi recebido com muitas honrarias pelas autoridades e pelos cristãos-novos e de onde dirigiu a sua carta a D. João III, David Judeu seguiu rapidamente para a Corte de Almeirim, onde chegou em Novembro de 1525, conforme consta da crónica coeva de Cristóvão Rodrigues Acenheiro, na Coronyqua dos Senhores Reis de Portugal, e publicada pela Academia das Ciências de Lisboa em 1824, na sua Colecção de Inéditos da História Portuguesa, tomo V.

Conhecemos já as “cousas de Importância e Segredo” que vinha submeter a D. João III, ou seja o seu bem elaborado plano sionista de que acima falámos, para a efectivação do qual vinha pedir ao monarca português um auxílio em artilharia e artilheiros experimentados, bem como uma recomendação para o seu imperial cunhado Carlos V.

Além da conquista da Palestina pelo exército judeu, David, mostrando-se tão hábil estratega como fino diplomata, propunha um conjunto e combinado ataque contra o império turco pelos exércitos de D. João III e de Carlos V, pelos Balcãs e pelo Mediterrâneo, e um outro ataque contra o Egipto por parte do Preste João.

Não é de admirar que a aparição do “embaixador” do pretenso reino judaico obtivesse a credulidade de Clemente VII e de D. João III, porquanto a lenda do reino das dez tribos era tida como certa, ainda na segunda metade do século XVII, por espíritos tão esclarecidos como o do ilustre rabino de Amesterdão e eminente escritor luso hebraico, Menassé ben Israel, e do grande estadista e protector da República inglesa, Oliver Cromwell.

O próprio David Judeu conta nas suas Memórias que, querendo D. João III verificar as suas afirmações, perguntara aos seus capitães da Índia, que conheciam Ormuz, sobre a possibilidade da existência, na península arábica, de um tal Reino judaico, e obteve resposta afirmativa.

Aliás, pequenos reinos judaicos existiram ainda, um no Iémen, na Arábia Feliz, até ao advento do maometismo no século VII, e outro na Abissínia, entre abexins-judeus chamados falachas, até o principio do século XVII.

Além disso, descobriu-se recentemente a existência, na Arábia Pétrea, de beduinos-judeus, descendentes, conforme reza a sua tradição, da tribo de Gad (uma das dez tribos), que enviaram, há poucos meses, delegados à Palestina, para onde pretendem imigrar. O judaísmo desconhecia até agora a existência de quaisquer descendentes das dez tribos e os jornais hebraicos da Palestina deram amplas informações deste insólito acontecimento. Estes beduinos-judeus falam um hebreu arcaico, trazem fartas cabeleiras sansónicas e parecem pertencer a uma raça robusta e aguerrida.

Teria David Judeu pertencido realmente a uma tribo de beduinos-judeus, que constituíssem naquele tempo um pequeno Reino independente no deserto de Habor?

Esta questão, aliás, é de somenos importância, pelo facto de que os 300.000 guerreiros judeus prometidos por David Judeu, se não viessem do seu «reino» do deserto de Habor, podiam facilmente recrutar-se entre os judeus portugueses e espanhóis da Itália e da África do Norte, com os quais David Judeu estava em permanente contacto e que, durante a sua estada em Portugal, lhe enviaram constantemente delegações e fundos.

O projecto sionista de David Judeu era, pois, perfeitamente viável, viesse o seu prometido exército judeu de onde viesse, e agradou a D. João III, como já tinha agradado a Clemente VII.

Todavia, David Judeu esteve em sérios riscos de ver o seu grande plano malogrado junto de D. João III, por culpa dos próprios cristãos-novos portugueses, sobre os quais a vinda do “embaixador” judeu a Portugal e a sua recepção oficial pelo Rei devem ter produzido enorme impressão.

Excesso de zelo

Os  cristãos-novos não viram em David Judeu um diplomata, mas um libertador e um Messias pelo que começaram a regressar ostensivamente à fé judaica, o que, na época de D. João III, era considerado gravíssimo delito ...

Fino diplomata, logo David percebeu o prejuízo que semelhante e extemporânea exaltação religiosa, por parte dos cristãos-novos portugueses, podia acarretar ao seu grande sonho de restauração da nação judaica na sua antiga pátria, projecto que, com justa razão, considerava muito mais importante do que um movimento de proselitismo judaico entre os cristãos-novos. Longe de favorecer este movimento, David Judeu tentou combatê-lo, aliás, sem grande resultado, fazendo ver aos cristãos-novos que não era Messias, mas homem de Estado.

Aconteceu porém, que um cristão-novo de Lisboa, Doutor Diogo Pires, mancebo culto e decidido, que desempenhava o cargo de escrivão da Suplicação, estranhando a frieza com que por ele foi recebido e imaginando a resultante do facto de lhe faltar o sinal físico do judaísmo, a circuncisão, não hesitou em circuncidar-se a si próprio, com risco grave para a vida, por causa da gangrena que lhe sobreveio e da qual milagrosamente escapou ... Durante a grave doença, no auge da febre, imaginara visões que o intimavam a regressar abertamente à religião judaica e a empreender missão de proselitismo. Assim fez, declarando-se oficialmente judeu e adoptando o nome hebraico de Salomão Malco, pelo qual se celebrizou na História judaica.

Todavia, mesmo depois do seu oficial regresso ao judaísmo, não conseguiu melhor acolhimento por parte de David Judeu, que, pressentindo o desagrado do rei, aconselhou o neófito judeu a fugir para a Turquia, sugestão que Diogo Pires prontamente acatou (1).

Costumava D. João III não mostrar pressa em despachar os embaixadores, a quem às vezes deixava esperar anos e anos. Pela data do salvo-conduto de saída - 21 de Junho de 1526 - se vê, porém, que o “embaixador” judeu teve o privilégio de tratar da sua missão em pouco mais de seis meses, verdadeiro “record” diplomático ... Além disso, os termos do salvo-conduto são particularmente amáveis e lisonjeiros para com David Judeu, a quem o rei deu a promessa, que lhe fora pedida, de o ajudar com artilharia e armamento para equipar o exército judeu e de o recomendar a seu cunhado, o imperador Carlos V.

Carecia o emissário, entretanto, antes de regressar à sua terra, de avistar-se com o papa, mas as guerras que rebentaram então e que lavraram pela Europa até fins de 1529, envolvendo os Estados com que tinham de tratar, principalmente Carlos V e o papa, que foi preso e submetido por aquele - obrigaram-no a demorar-se em Portugal.

( 1 ) Entre os documentos que conseguimos encontrar na Torre do Tombo, relativos a David Judeu e Diogo Pires, e que - como dissemos - tencionamos publicar em breve, encontra-se a Carta de nomeação do “doutor diogo pirez” ao cargo de «escryuam damte os ouujdores da nosa casa da sopricaçam», concedida por D. Manuel em 3 de Fevereiro de 1521 e confirmada por D. João III em 20 de Junho de 1524. Diogo Pires, que já nascera cristão, deve ter nascido depois da expulsão dos judeus de 1497, mas pouco depois, pelo facto de já ser, em Fevereiro de 1521, doutor em Direito e desempenhar tão importante cargo. Calculamos, pois, que tivesse, à chegada de David Judeu a Portugal, em 1525, a idade de 25 a 28 anos.

Nas suas Memórias, David Judeu fala de Diogo Pires, como desempenhando o lugar de «secretário do rei» e que a sua conversão ao judaismo produzira grande alarme na Côrte. Esta conversão - que David Judeu em nada favorecera - foi aproveitada, conforme conta, pelos seus inimigos, para indispor o rei contra ele. Como um dos seus principais inimigos na Côrte, David Judeu cita o antigo embaixador em Roma, D. Miguel da Silva, que o conheceu ainda em Roma e que quis impedir a sua vinda a Portugal.

Apesar da afirmação de David Judeu de que o rei, que a principio o censurara pela circuncisão e conversão de Diogo Pires, não lho tomou a mal, depois de ouvida a sua justificação, calculamos que o acto intempestivo de Diogo Pires prejudicou o plano sionista de David Judeu junto de D. João 1I1, como o prejudicou definitivamente, como adiante veremos, perante o imperador Carlos V.

Com efeito - e seguindo sempre a narração de David Judeu - D. João III, que a princípio lhe tinha prometido a entrega de “oito caravelas com 4.000 peças de fogo, entre grandes e pequenas”, nada lhe entregou, dizendo-lhe apenas, à sua saída de Portugal que “não lho podia dar este ano nem no próximo ano”, o que David Judeu considerava como falta de cumprimento da promessa.

Alem desse pormenor, não há dúvida que foi grande a influência exercida pelo «embaixador» judeu sobre D. João III, pelo facto de - apesar do seu temperamento fanático - não reagir contra o movimento pro-judaico que alastrou entre os cristãos-novos, devido à presença de um «embaixador» judeu na Corte, que - por motivos alheios à sua vontade – ficou retido em Portugal por muito mais tempo do que esperava.

A Inquisição espanhola

Os documentos que comprovam a presença de David  Judeu em Portugal ainda em 1528 são duas cartas dirigidas a D. João III pelo inquisidor espanhol Dr. Nuno de Selaya e datadas, respectivamente, de 30 de Março e 15 de Junho de 1528. Na primeira, parcialmente reproduzida e comentada por Alexandre Herculano na História da Origem e do Estabelecimento da Inquisição em Portugal, o inquisidor espanhol lamenta que «um judeu chegado aos reinos de Portugal, haverá dois ou três anos, vindo de estranhas terras, estava pervertendo à perfídia judaica a muitos cristãos-novos, prometendo-lhes que um rei, irmão seu, os havia de levar à Terra de Promissão», etc.

A epístola do douto inquisidor espanhol, longa e cheia de complicados argumentos teológicos, deve ter sido escrita, principalmente, na intenção de actuar sobre o ânimo de D. João III, que o bem informado inquisidor devia saber fortemente influenciado, a favor dos cristãos-novos, pela presença do «embaixador» judeu. A pesar de tão engenhosamente tramada a carta não produziu nenhum efeito, visto que, numa segunda carta, referente ao mesmo assunto, o inquisidor se queixa que o seu anterior pedido não tivesse sido atendido. Não consta, porém, que, dessa nova diligência, tivesse obtido, por parte do monarca português, melhor acolhimento.

Estas cartas provam:

1. Que David Judeu ainda estava em Portugal em Junho de 1528.

2. Que a presença de David Judeu em Portugal e a sua posição privilegiada na Corte produziram entre os cristãos-novos um forte movimento de regresso à fé judaica, e

3. Que, durante a estada do “embaixador” judeu em Portugal, o movimento judaizante dos cristãos-novos não encontrou oposição por parte do monarca português.

Se considerarmos, por outro lado que antes da chegada de David Judeu a Portugal, D. João III andava empenhadíssimo contra os cristãos-novos; devemos concluir que a mudança repentina na atitude do rei foi devida à influência do «embaixador» judeu.

Sabe-se, com efeito, que D. João III, procurando pretexto para obter de Roma a implantação da Inquisição em Portugal, lançou mão de um vulgar espião cristão-novo, chamado Henrique Nunes, por alcunha o Firme-fé, homem de confiança do inquisidor espanhol Lucero. O papel reservado a este espião, que o rei mandara vir especialmente das Canárias, era, captando a confiança dos seus antigos correligionários, descobrir e delatar os adeptos da crença antiga.

Todavia, o espião não chegou a entregar ao soberano a lista dos cristãos-novos judaizantes, pois reconhecido traidor, foi morto no caminho. Da devassa que se seguiu saíram culpados dois clérigos cristãos-novos, Diogo Vaz, de Olivença, e André Dias, de Viana, que tiveram as mãos decepadas e foram enforcados em Évora, no mês de Novembro de 1524, justamente, um ano antes da chegada de David Judeu!

Com a chegada do «embaixador» judeu e durante a sua estada em Portugal, a atitude do rei para com os cristãos-novos mudou radicalmente, como o provam as queixas do inquisidor espanhol, Dr. Selaya, de que acima falámos. E, durante a sua estadia na corte, de 1525 a 1528, D. João III aparece-nos completamente mudado, amigo de judeus e tolerante para com os cristãos-novos, apesar do forte movimento judaizante que deles se apoderou.

Logo após a saída de David Judeu de .Portugal, o rei voltou à sua antiga política anti-judaica. Aliás, pode determinar-se a data aproximada da saída de David Judeu, de Portugal, pelo recomeço das perseguições.

Para este efeito, pode servir-nos outro documento existente na Torre do Tombo, uma carta dos juízes ordinários de Gouveia, datada de 8 de Novembro de 1528, na qual se pede ao rei a condenação à morte de dois cristãos-novos de Gouveia, acusados de desacato a uma imagem da Virgem, ali muito venerada. Da devassa concluiu-se que o sacrilégio tinha sido obra dos cristãos-novos. Acharam-se três cristãos-novos culpados, que foram presos e remetidos para a Corte. Como principais acusadores dos réus, figuraram dois habitantes de Gouveia, Richarte Henriques e um certo Barbuda, que apresentaram também um grande número de testemunhas de acusação. Condenados, os três infelizes cristãos-novos foram logo queimados vivos!

Mais tarde, devido a uma briga de compadres, soube-se que quem cometeu o desacato foi o Barbuda, de conivência com o Richarte; que o crime foi perpetrado no intuito de acusar e de roubar alguns cristãos-novos abastados; e que as numerosas testemunhas de acusação eram todas perjuras. O Barbuda foi preso e remetido ao cárcere de Lisboa, mas não tardou que lhe dessem fuga, por causa do grande número de testemunhas comprometidas ...

Todavia, este facto em nada modificou a atitude hostil dos habitantes de Gouveia para com os seus concidadãos cristãos-novos. O mesmo sucedia em diversas outras partes do reino. Em Olivença, por exemplo, (então ainda pertencente a Portugal) não esperaram pelo estabelecimento da Inquisição em Portugal, nem pelo fim do prazo de isenção concedido por D. Manuel aos judeus convertidos a força ao cristianismo, para instaurarem aí autos-de-fé e queimar cristãos-novos, espectáculos que a turba delirante celebrava com regozijo público e touradas ...

Em Santarém, onde David Judeu residiu, durante a sua estada em Portugal, a animosidade pública contra os cristãos-novos ia degenerando, em 1531, numa carnificina como a de Lisboa de 1506, motivada pelo tremor de terra de 26 de Janeiro de 1531, cuja responsabilidade era assacada aos cristãos-novos... A matança de judeus foi evitada graças à eficaz intervenção do eminente comediógrafo Gil Vicente, que teve a rara coragem de, num discurso oportuno, feito na presença do clero, fazer enérgica oposição à campanha insidiosa contra os cristãos-novos, preparada por certos pregadores e frades.

Gil Vicente não se contentou em discursar, dirigindo também uma carta a D. João III em que lhe dá conta da sua acção a favor dos cristãos-novos escalabitanos. A carta é datada de 26 de Janeiro de 1531 e vem publicada nas Obras Completas de Gil Vicente.

Não é nosso intuito enumerar as perseguições aos cristãos-novos depois da saída de David Judeu, mas demonstrar a conexão entre ambos os factos. É provável, aliás, que as perseguições, depois da saída de David, constituíssem, em parte, uma reacção popular contra o movimento judaizante dos cristãos-novos durante a estada de David Judeu em Portugal. A data do recomeço das perseguições anti-judaicas deve, pois andar ligada com a da saída do “embaixador” judeu.

Perseguições e suplício

Nas Memórias de David Judeu, onde, infelizmente faltam as datas, conta-se que, na sua viagem de regresso foi incomodado nalguns portos espanhóis, principalmente em Almeria, tendo sido preso à sua chegada a Lião. Foi levado para a fronteira de Avinhão, onde, graças à intervenção de Roma, foi posto em liberdade. O facto passou-se dois anos antes da sua segunda aparição em Veneza, em Novembro de 1530. Consequentemente, David Judeu esteve em Avinhão em fins de 1528, o que confirma a nossa dedução dos documentos portugueses.

Como vimos, era intenção de David entrevistar-se com o papa, para lhe dar conta dos resultados da sua missão em Portugal, antes de se dirigir para junto do imperador Carlos V. Não podia ter ido directamente à Itália por causa da guerra que só terminara no fim de 1529.

Teria ido, entretanto, ao Norte de África tratar com as respectivas comunidades judaicas da preparação do projectado exército para a conquista da Palestina? Ignoramo-lo. Aliás, nenhum dos seus biógrafos sabe da actividade de Reubeni entre fins de 1528 e Novembro de 1530, quando apareceu, pela segunda vez, em Veneza, pelo facto das suas Memórias acabarem no relato dos acontecimentos de Avinhão.

Quanto à sua segunda estada em Veneza, conhece-se, pelo relatório do sábio geógrafo veneziano João Baptista Ramusio, datado de Novembro de 1530, a pedido do Senado de Veneza. O relatório de Ramusio é sumamente interessante, mas era desfavorável a Reubeni, pois não o autorizaram a ficar em Veneza. Segue pois para Roma, onde soube o que tinha acontecido, entretanto, ao seu amigo português Salomão Malco, o conhecido Diogo Pires, escrivão da Suplicação, que, durante a estadia de Reubeni em Lisboa, se convertera ao Judaísmo.

Fugido de Lisboa após seu regresso à fé judaica, Diogo Pires tinha ido à Turquia e à Palestina, onde se aperfeiçoara na língua hebraica e no estudo da «cabala». Regressou depois à Itália, para se dedicar ao proselitismo judaico, a pontos de ter tentado converter ao judaísmo o cardeal Pucci e o próprio papa ! Foi preso e seria queimado se não lhe valesse a benévola e caritativa intervenção do próprio papa que, perdoando-lhe, lhe proporcionou a fuga.

Malco dirigiu-se então a França, onde - parece - renovou. a sua louca tentativa de querer converter ao judaísmo o rei de França, Francisco I, tentativa que também passou impune, seguindo depois para a Alemanha, onde voltou a encontrar-se com David Reubeni.

O diplomata judeu, depois de informar Clemente VII do bom resultado da sua missão junto de D. João III, dirigiu-se a Ratisbona (Resenburgo), onde residia o imperador Carlos V, junto de quem ia advogar a causa da Conquista da Palestina aos turcos por um exército judeu e da restauração do reino de Judá.

Malco ofereceu-se para o ajudar, mas outra vez o místico e incorrigível propagandista, em vez de coadjuvar Reubeni na sua missão diplomática, teve a louca ousadia de tentar converter o imperador ao judaísmo ...

Carlos V, que não tinha a feição do humanitário e bonacheirão Clemente VII, mandou prende-los a ambos e levou-os na sua comitiva para Mântua, onde foram entregues à Inquisição italiana. Pires - Malco - foi condenado, como apóstata, à morte. Já amarrado ao cadafalso, para ser queimado vivo, foi-lhe oferecida a liberdade, se abjurasse a fé judaica e regressasse ao seio do catolicismo. O místico Malco recusou, porém, a oferta do imperador, preferindo a morte de mártir ...

Quanto a David Reubeni, contra quem a Inquisição italiana se declarara incompetente, pelo facto de ser judeu nato, o imperador mandou entregá-lo à sanha vindicativa dos inquisidoras espanhóis de Llerena, que tinham antigas contas a saldar com ele, por causa da sua actividade em Portugal.

Pela pena do cronista Cristóvão Rodrigues Acenheiro, que vivia no reinado de D. João III, sabe-se que, em 1535, «Davit-Judeu» ainda se encontrava preso na “Imquissisam de Lherena”, “até que haja a fim que merese”..

D. João III que, desde a chegada do «embaixador» judeu a Portugal, em 1525, não tinha dado andamento à sua ideia fixa do estabelecimento da Inquisição em Portugal, logo que soube da atitude do imperador Carlos V, para com o diplomata judeu, não tardou em escrever (em Abril ou Maio de 1531) ao seu enviado em Roma, Dr. Brás Neto, para o encarregar de solicitar a bula para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, com os mesmos poderes da Inquisição de Castela de confiscar os bens dos presos ...

Os historiadores judeus desconhecem a sorte final de David Reubeni, mas, graças a outro documento que se encontra na Torre do Tombo, pode conjecturar-se que a Inquisição espanhola de Llerena o entregou ao «cuidado» da Inquisição de Évora, logo que o Santo Ofício foi instituído em Portugal, em 22 de Outubro de 1536, e que David Reubeni foi queimado no primeiro auto-de-fé de Évora em 1542.

Trata-se de um manuscrito, intitulado: Memória dos Autos de Fé que tem havido públicos e particulares na Inquisição de Évora e Listas que dos mesmos tenho.

Neste manuscrito, que começa pela «Lembrança do Primeiro Auto Público de Fé que se celebrou na Praça da Cidade de Évora, no anno de 1542», diz-se que saíram neste Auto castigadas muitas pessoas, entre homens e mulheres, entre as quais se cita

«O judeu do Çapato, dizem que foi çapateyro.· o qual veyo da India Oriental a Portugal, e lhes meteo na cabeça e persuadio aos moradores do tal Reyno, que era o Messias esperado, e que vinha do Eufrates de se manifestar, e os que alli estavaó por tal o creraó, e preso, e apertado confessou a mentira, e que o fesera por ser delles estimado, e valido, e se soube que naó era desta casta».

A pessoa designada por «0 Judeu do çapato» não pode ser outra do que David Reubeni, que, como consta deste documento foi queimado no primeiro auto-de-fé de Évora.

E possível que, «apertado» pelos bem conhecidos «apertões» da Inquisição, confessasse que não era filho de rei, mas simples sapateiro... Este facto, porém, não o desmerece, mas ainda mais o exalta, e engrandece a nossa admiração pela ingeniosidade e oportunidade política do seu genial projecto de reconquista da Palestina pelos judeus e de restauração do reino de Judá, com o consentimento e ajuda dos chefes da Cristandade. Esse bem pensado e elaborado projecto constituiu a primeira tentativa sionista internacional e teve, como vimos, a sua origem em Portugal. Malogrou-se, todavia, por culpa do excesso de zelo de proselitismo judaico de um místico cristão-novo português Diogo Pires (Salomão Malco) e o primeiro projecto sionista acabou, com o seu genial mas infeliz autor, nas fogueiras da Inquisição!

 


 

 

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